A Euronews falou com Alexis Goosdeel, diretor da Agência sobre Drogas da União Europeia (EUDA). Em julho, a agência, com sede em Lisboa, substituiu o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA).
As novas drogas, novas formas de consumo e o aumento da criminalidade relacionada com o tráfico são algumas das preocupações levantadas por Alexis Goodswell, neste episódio da Global Conversation. O diretor executivo da EUDA ite que descriminalização do consumo em Portugal é um caso isolado, mas importante e interessante, e que a proibição de substâncias não se deve reger por critérios ideológicos.
Alexis Goosdeel, muito obrigada por ter aceitado o nosso convite para o programa.
Alexis Goosdeel: Obrigado pelo convite.
Começou com este papel há muito tempo, quando a instituição que dirige ainda era um centro de monitorização. Em julho, tornou-se uma agência com mais poderes. Já vamos falar sobre isso. Mas gostava de começar com a situação dos novos tipos de drogas que as pessoas estão a tomar, incluindo coisas como a “cocaína rosa”. Que novas drogas são estas e que riscos colocam para as pessoas que as usam?
As novas drogas são drogas ou substâncias que ainda não estão classificadas como drogas. É por isso que também lhes chamamos novas substâncias psicoativas. Têm um efeito psicoativo no cérebro, mas ainda não estão classificadas como drogas. Nos últimos 27 anos, criámos e desenvolvemos um sistema europeu de alerta em relação a estas substâncias e detetámos mais de 950, que nunca tinham aparecido no mercado europeu. E algumas podem ser prejudiciais para a saúde ou até de terem consequências letais.
É um pouco surpreendente este termo: “cocaína rosa”. Tenho a certeza que a maioria das pessoas não está muito familiarizada com estes novos produtos. Em que consiste uma substância como esta e por que está a chegar ao mercado?
A “cocaína rosa” é também conhecida por 2C, por exemplo na América Latina ou em Espanha. Vem do nome químico, que é 2C-B. Mas o que observamos é que, em muitos casos, há outras substâncias – como por exemplo, a cetamina, que é uma substância específica que se está a tornar mais problemática - que estão a aparecer um pouco por todo o lado. Por exemplo, fizemos um inquérito na Internet a pessoas que declararam consumir substâncias e até 10% delas disseram ter consumido cetamina pelo menos uma vez nos últimos dois meses.
É fácil é ter o a estas substâncias médicas e que riscos representam?
Bem, em primeiro lugar, estas não são, ou não são apenas, substâncias médicas. Se falarmos de fentanil, sim. A primeira molécula de fentanil foi criada, foi inventada, por uma empresa farmacêutica belga, mas foi durante a investigação de um analgésico e anestésico mais forte. Portanto, havia toda a justificação. Deu nome a uma família de moléculas que têm em comum o núcleo e algumas propriedades, mas são ilícitas. E estas moléculas estão a ser vendidas sobretudo através da Internet, não só da darknet, mas também da internet normal, e com estratégias de marketing extremamente bem desenvolvidas.
Há muitas razões para as pessoas começarem a consumir este tipo de substâncias. Mas também podemos dizer que o consumo de drogas está associado a algumas experiências sexuais. Até há o termo “chemsex”. As pessoas fazem-no de forma consciente ou porque estão a ser abusadas por outras pessoas que se aproveitam. Vê isto como uma grande tendência e como um risco para a saúde?
Bem, eu diria que a principal tendência e o maior risco é, tal como dizemos, “tudo, toda a gente, em todo o lado”. Hoje as drogas estão em todo o lado, quer sejam contrabandeadas para a Europa, quer sejam produzidas no território da União Europeia. Tudo pode ser objeto de um comportamento aditivo. Por isso, a distinção - entre drogas duras e drogas leves, ilícitas e lícitas - não abrange toda a complexidade que existe. E há também o policonsumo de drogas. Depois, como consequência, todos podem, de forma pessoal ou indireta, ter um episódio, grave ou crónico, de dependência de uma destas substâncias.
Estamos a falar das novidades destas substâncias. Mas isso não quer dizer que haja uma diminuição do consumo mais tradicional de canábis, cocaína ou heroína.
Na verdade, estas novas substâncias não estão muito difundidas hoje em dia. É um mercado em constante movimento. A canábis e os derivados da canábis continuam a ser as substâncias mais usadas na Europa. A cocaína está agora muito mais difundida devido a um enorme aumento da produção e da disponibilidade. Mas também vemos um aumento na produção de anfetaminas. E, como referiu, há o chemsex. O chemsex é a prática de usar substâncias para sustentar uma atividade sexual mais prolongada e ter relações sexuais com muitos parceiros, sobretudo homens que têm sexo com outros homens. O que vemos neste caso é que normalmente podem usar, por exemplo, metanfetaminas, que antes não se usavam muito na Europa. E, com o tempo, podem tornar-se uma extensão da população que consome substâncias. Portanto, isto quer dizer que temos grandes riscos, problemas e desafios e que também precisamos de ser muito mais ágeis em comparação com há 20 ou 30 anos.
E de que forma é que estes comportamentos têm também impacto em doenças associadas, como o VIH e outras doenças?
Há várias categorias de danos ou problemas relacionados com a saúde. Uma delas é que, como mencionámos no nosso último Relatório Europeu sobre Drogas, regressámos a taxas de infeção por VIH anteriores à covid, o que não é um bom sinal. Também noutras áreas, como na área das doenças infecciosas, há estudos que mostram um aumento das doenças sexualmente transmissíveis e que algumas delas tornaram-se resistentes aos antibióticos e às terapêuticas. Por isso, é importante que as políticas de prevenção – quer as políticas nacionais, quer as políticas europeias em matéria de droga - tenham uma abordagem mais holística e também tentem interpelar e antecipar. Também para aqueles pequenos grupos de pessoas que estão a começar uma prática que ainda não está generalizada, mas que pode tornar-se, e que tem o potencial de se tornar um problema grave para a saúde.
Como avalia a capacidade dos sistemas de saúde, em geral nos estados membros da União Europeia, para resolver estes problemas de saúde em situações graves - como overdoses – e também nos casos de pessoas que querem parar o consumo regular?
Bem, eu diria que se olharmos para o início da epidemia de heroína na União Europeia, fizemos enormes progressos e obtivemos resultados muito bons da nossa abordagem coletiva na Europa, nos últimos 30 anos. Reduzimos drasticamente o número de mortes relacionadas com drogas. Atualmente, temos entre 7.000 e 8.000 pessoas a morrer de overdose na União Europeia, em comparação com mais de 110.000 nos Estados Unidos, para uma população que é maior na Europa do que nos Estados Unidos. Assistimos a um aumento dramático da oferta de tratamento, incluindo o tratamento de substituição. No fim da década de 90, tínhamos provavelmente entre 30 a 35 mil vagas para tratamento e temos agora mais de 650 mil locais de tratamento na Europa. Ou seja, em relação à epidemia da heroína, a resposta tem sido progressiva e muito bem-sucedida. O nosso problema e desafio é termos mais substâncias, combinações de substâncias e mais policonsumo de drogas. Precisamos de mudar a nossa abordagem para a prevenção, tratamento e redução de danos. Porque não se trata apenas dos tratamentos de substituição que funcionam muito bem para os opiáceos. É também desenvolver novas formas de prevenção, tratamento e redução de danos para outras substâncias e outras utilizações de substâncias.
E há interesse dos ministérios da Saúde dos estados membros da União Europeia em abordar esta questão?
Certamente que existe interesse. Mas é preciso recordar que enfrentámos grandes crises económicas na União Europeia, incluindo a crise do euro em países como a Grécia. E isto significa que... Depois da crise do subprime, uma das consequências foi uma grande diminuição dos orçamentos para a saúde pública em todos os Estados-membros da União Europeia. Daí o novo papel da nossa agência, de contribuir para a preparação da União Europeia para estas novas questões relacionadas com a droga. A primeira mensagem que transmitimos aos Estados-membros é que, uma vez que podemos enfrentar novos riscos e desafios num futuro próximo, precisamos de manter o investimento na saúde e na saúde pública. Ao mesmo tempo, precisamos de continuar a investir em novas abordagens terapêuticas, novos modelos de prevenção para estas novas substâncias e formas de consumo, que estão também associadas a uma diferente perceção de risco por parte da população.
Uma estratégia, como aquela que acabou de descrever, seria a forma de abordar aquilo a que podemos chamar a área cinzenta do consumo de substâncias? Porque a canábis também pode ser usada para tratar e ajudar pessoas com cancro. Algumas substâncias químicas também podem ajudar em casos de doenças mentais graves. Como criar estes limites?
Essa é uma questão muito interessante. Gosto muito. Porquê? Porque durante muitos e muitos anos houve uma discussão contra ou a favor, por exemplo, do uso médico dos canabinóides. E geralmente há muita confusão sobre se é útil. Pode servir como tratamento ou ser combinado num tratamento? Depende também de quais são os extratos de canábis, porqueas possibilidades são muitas. Para mim, o princípio fundamental da toxicologia moderna, durante 250 anos, é que a diferença entre o veneno, entre o medicamento ou a droga, é a dose, não a substância. Portanto, potencialmente, sim, precisamos de mais investigação. Publicámos um relatório sobre o uso médico dos canabinóides. Vamos publicar muito em breve um relatório sobre o uso médico dos psicadélicos. E penso que a mensagem principal é: não devemos ter uma abordagem ideológica, ao proibir ou não estas substâncias. Porque se o fizéssemos, deveríamos parar de usar morfina para controlar a dor. E este é o único tratamento que funciona para as dores muito fortes. É preciso impulsionar a investigação científica e médica.
Mas, por exemplo, há mais de 20 anos, Portugal é o único país a descriminalizar o consumo de qualquer droga.
Vão festejar 25 anos no próximo ano
Exatamente. Por isso, apenas a produção e o tráfico de droga são crimes. Como avalia este caso e porque é que ainda é tão isolado?
É um caso isolado, mas extremamente importante e interessante. Apesar de, há 24 anos, haver pessoas que se opunham fortemente e que fingiam que isso ia incentivar as pessoas a consumir drogas, as provas científicas mostram que não foi assim. Por que é que os outros países não seguiram o mesmo exemplo? Em primeiro lugar, depende da filosofia e da abordagem de cada governo, porque a política da toxicodependência é uma competência nacional, não é uma competência europeia. Mas observámos que, ao longo dos últimos 25 anos, houve uma convergência entre os Estados-membros para pelo menos tentar reduzir e evitar que as pessoas fossem postas na prisão só porque usavam drogas, porque, no fim, acaba por ser mais um problema para eles e para a sociedade.
Vamos falar sobre produção e o tráfico de droga. Desde que os talibãs chegaram ao poder no Afeganistão, em 2021, verificou-se uma redução na produção de opiáceos. Como é que isto afetou o mercado da heroína aqui na Europa?
Até agora, pelas informações que temos, ainda não afetou o mercado na Europa. Mas pode e provavelmente vai acontecer. O que podemos dizer é que, sim, se continuar, provavelmente no próximo ano, vamos ver algum efeito da proibição da produção do ópio no Afeganistão. Sabemos que na Ásia há outros países que produzem ópio, mas não na mesma quantidade. Portanto, não vão substituir o que já não é produzido no Afeganistão. Resta saber qual será a atitude dos consumidores, dos clientes. Se olharmos para o que aconteceu durante o último regime talibã, que tomou a mesma decisão e a implementou da mesma forma, verificámos que o comportamento dos consumidores de heroína na União Europeia foi diferente de cidade para cidade ou de país para país. Algumas pessoas tentaram começar o tratamento, outras aram para outros opiáceos, incluindo opiáceos sintéticos. É por isso que contribuímos para a Coligação Global para as Drogas Sintéticas, que foi criada pelos Estados Unidos com o apoio da União Europeia. Houve uma reunião há duas semanas em que participámos, mas a nossa mensagem é que precisamos de continuar flexíveis e ágeis e precisamos de garantir a manutenção do investimento na saúde pública e na resposta.
Outro grande fluxo vem da América Latina para portos europeus, na Bélgica, nos Países Baixos, em França, só para dar alguns exemplos. Existe algum risco de criação dos chamados "estados do narcotráfico" na União Europeia?
Esta é uma pergunta que me fazem com frequência. As pessoas estão assustadas e preocupadas. Mas eu acho que não é o caso. Há uma ameaça ao Estado de Direito, sim. E, para mim, a novidade mais preocupante nos últimos sete ou oito anos é o enorme aumento da violência relacionada com as drogas na União Europeia. Ou seja, há dez anos, quando trabalhávamos com a Comissão Europeia a ajudar a Comissão a conceber uma estratégia para a violência relacionada com as drogas, falávamos da América Central. Hoje falamos da União Europeia.
Isso deve-se à violência entre gangues, ao facto de já terem laboratórios locais, de estarem a competir no terreno e de usarem crianças?
Há muitos fatores. Sim, mencionou alguns deles. Isso está completamente certo. Penso que o que vemos hoje é também o resultado de uma evolução que demorou provavelmente dez anos, que foi impulsionada, entre outras coisas, pela pandemia da covid. Porque agora a maior parte das drogas chegam em contentores, o que não acontecia antes. Mas penso que o que estamos a ver é a ponta do icebergue, que antes não era visível. Além disso, antes tivemos grandes desafios, como por exemplo, com a luta contra o terrorismo. Então, isto provavelmente significa que não vimos os primeiros sinais dos grupos de crime organizado a mudar a forma de se organizar. E o que vemos é que infelizmente agora estão em todo o lado. Quase todos os dias, se não todos os dias, todas as semanas, em todos ou na maioria dos Estados-membros da União Europeia. E isto constitui uma ameaça para o Estado de direito. Incluindo na Bélgica, onde houve uma ameaça contra o ministro da Justiça.
Exatamente, magistrados, ministros estão a ser ameaçados.
Ou na Holanda, onde um advogado foi morto na rua, bem como um jornalista famoso. Portanto, existe uma ameaça ao Estado de direito, mas ao mesmo tempo é uma ameaça para todas as democracias porque, como declararam os presidentes do Fórum Europeu para a Segurança Urbana (fizeram uma declaração conjunta em Bruxelas, em Março), precisamos de segurança e proteção, mas antes precisamos de uma abordagem mais holística e integrada. Ou seja, a resposta não pode ser declararmos um combate apenas aos consumidores, porque é como declarar um combate contra os nossos filhos. E nos países onde isso aconteceu – veja-se o caso do México – não é possível ter resultados positivos. Precisamos de encontrar abordagens novas e mais coordenadas, uma abordagem mais integrada, para não pôr em perigo o nosso modelo de coesão social, os nossos valores europeus. E para mim, este é definitivamente um dos maiores desafios. É por isso que organizámos a primeira Conferência Europeia sobre Violência relacionada com a Droga, no fim de novembro, aqui em Bruxelas.
Gostava também de falar do aspeto financeiro, porque o tráfico de droga é muito lucrativo. Está associado à corrupção, à lavagem de dinheiro. Os Estados-membros, os governos e as autoridades em geral estão a fazer o suficiente para cortar os benefícios económicos deste... Digamos deste "setor"?
Penso que é um dos desenvolvimentos mais recentes e, provavelmente, mais promissores. Provavelmente sabe que a Comissão e a comissária Johansson publicaram um roteiro para a luta contra o crime e o tráfico de droga, no ano ado. Neste contexto, existem algumas iniciativas em curso, novos planos, novos programas. E paralelamente, durante a presidência belga da União Europeia, surgiu uma nova agência para a luta contra o branqueamento de capitais. O princípio da criação da agência foi adotado durante a presidência belga. Portanto, penso que há uma convergência. E, como disse, se não nos focarmos onde os grupos têm o máximo benefício - que é a razão pela qual organizam o tráfico - se não tivermos este alvo, não podemos esperar, apenas com uma mensagem de prevenção, conseguir resolver o problema a sério. Precisamos de uma abordagem integrada para reduzir os fluxos financeiros, para os intercetar e também (precisamos) de legislação em alguns Estados-membros para confiscar ativos, que é também algo muito, muito importante.
Ótimo. Este é um tema importante e de certa forma fascinante. Mas penso que chegámos ao fim do tempo do nosso programa. Alexis Goosdeel, muito obrigada por todas as explicações e boa sorte para os desafios que esta nova agência tem pela frente.
Muito obrigado.