Uma vasta coligação de nações democráticas apoiou a formação de um tribunal especial para julgar o crime de agressão contra a Ucrânia. Mas levar Vladimir Putin a julgamento vai ser um desafio.
Uma vasta coligação de nações democráticas aprovou a formação de um tribunal especial para julgar o crime de agressão contra a Ucrânia, um gesto simbólico poderoso que assinala o Dia da Europa e que deverá enfrentar desafios formidáveis para cumprir a sua missão.
A aprovação política, que consolida mais de dois anos de trabalho de bastidores entre consultores jurídicos, foi selada na tarde de sexta-feira durante uma visita dos ministros dos Negócios Estrangeiros a Lviv, a maior cidade do oeste da Ucrânia.
A ocasião reuniu enviados de quase 40 países europeus e não europeus, juntamente com representantes das instituições da UE e do Conselho da Europa. O primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Andrii Sybiha, participaram na reunião.
A ausência mais flagrante foi a dos Estados Unidos, que estiveram estreitamente envolvidos nas discussões durante a istração Biden, mas mudaram de direção com Donald Trump.
"Cada centímetro da guerra da Rússia foi documentado. Não deixa margem para dúvidas sobre a manifesta violação da Carta das Nações Unidas por parte da Rússia. Não deixa espaço para a impunidade. A agressão da Rússia não ficará impune", afirmou a Alta Representante, Kaja Kallas.
David Lammy, o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, afirmou: "É absolutamente claro que, quando esta guerra terminar, aqueles que cometeram crimes na Rússia terão de responder pelos seus crimes de agressão e pelos seus crimes contra a humanidade".
O estatuto acordado pela coligação prevê um tribunal construído de raiz com a tarefa de investigar e julgar um crime específico: o crime de agressão, definido como a preparação e execução da invasão em grande escala da Ucrânia.
Ao contrário dos crimes de guerra, dos crimes contra a humanidade e do genocídio, que se aplicam aos indivíduos que cometem as atrocidades, o crime de agressão é um crime de liderança que investiga as pessoas que, em última análise, são responsáveis pelo controlo do Estado agressor.
Na prática, isto abrange a chamada troika - o presidente, o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros - bem como os comandantes militares de alta patente que supervisionaram o ataque à soberania e à integridade territorial da Ucrânia.
Vladimir Putin, o cérebro por detrás da invasão e o principal promotor da sua narrativa revisionista, torna-se imediatamente o alvo mais procurado.
O tribunal terá o poder de impor penas pesadas aos culpados, incluindo a prisão perpétua "quando justificada por extrema gravidade", o confisco de bens pessoais e multas monetárias, explicou um funcionário da UE.
O produto das confiscações e das multas será transferido para um novo fundo de compensação para as vítimas ucranianas, um elemento inovador que ajuda a criar uma ligação "entre a atividade criminosa e o direito de reparação", referiu o funcionário.
Após a aprovação de sexta-feira, os textos jurídicos serão objeto de uma votação formal no Conselho da Europa, uma organização de defesa dos direitos humanos com sede em Estrasburgo, que fornecerá o quadro institucional para a nova entidade jurídica.
O início dos trabalhos formais está previsto para 2026.
"Este é mais do que um marco diplomático; é uma promessa solene às vítimas, à história e às gerações futuras - de que será feita justiça e de que a paz sustentável será construída com base na verdade, na responsabilidade e no Estado de direito", afirmou Michael McGrath, Comissário Europeu para a Justiça, que também se deslocou a Lviv para a ocasião.
Condicionalismos jurídicos
No entanto, o tribunal especial terá de enfrentar obstáculos significativos antes de conseguir resultados.
Os procuradores serão autorizados a efetuar julgamentos à revelia, ou seja, sem a presença física do arguido na sala, que será representado por um advogado.
Mas o mais importante é que a troika continuará imune enquanto se mantiver em funções, como a Euronews noticiou anteriormente. Depois de ter redesenhado o Estado russo de acordo com a sua própria visão, é pouco provável que Putin saia do Kremlin tão cedo.
O Ministério Público ainda pode apresentar uma acusação contra o presidente Putin, o primeiro-ministro Mikhail Mishustin e o ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov pelo crime de agressão, mas a câmara manterá o processo suspenso até que qualquer um dos acusados se demita.
"Assim que deixarem o cargo, será possível um julgamento completo", explicou outro funcionário da UE, falando sob condição de anonimato. "Não há impunidade. A imunidade é uma suspensão temporária do julgamento enquanto a pessoa estiver em funções. Nem mais, nem menos".
O julgamento à revelia poderá ser efectuado para aqueles que, fora da troika, são abrangidos pelo crime de agressão, como os comandantes militares e da marinha. Os que forem condenados desta forma terão direito a um novo julgamento se alguma vez se apresentarem pessoalmente.
Estima-se que entre 20 e 30 funcionários russos sejam potenciais acusados.
Entre os alvos prováveis contam-se Valery Gerasimov, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas russas; Sergey Kobylash, comandante da Força Aérea russa; e Sergei Shoigu, antigo ministro da Defesa e atual secretário do Conselho de Segurança; todos eles objeto de mandados de captura emitidos pelo Tribunal Penal Internacional (TPI).
O tribunal especial destina-se a preencher a lacuna deixada pelo TPI, que tem competência para julgar o crime de agressão, mas apenas quando a infração é cometida por um Estado parte. A Rússia não é signatária do Estatuto de Roma. Além disso, a Rússia pode utilizar o seu direito de veto no Conselho de Segurança da ONU para bloquear qualquer litígio internacional.
Tal como o TPI, o novo tribunal deverá ter a sua sede em Haia, depois de o Governo neerlandês ter manifestado interesse em acolher o organismo, que será mantido com fundos pagos por todos os países participantes, pela UE e pelo Conselho da Europa. A nomeação dos procuradores e juízes será efectuada por um de peritos independentes.
América não aparece
Embora a coligação democrática tenha saudado o evento de sexta-feira como um avanço numa busca de responsabilização que dura há anos, a ausência dos Estados Unidos expôs o fosso cada vez maior entre Washington e os seus aliados ocidentais tradicionais.
Desde o seu regresso à Casa Branca, Donald Trump tem promovido uma aproximação diplomática rápida com Putin, chegando mesmo a repetir publicamente os pontos de vista do Kremlin. Num momento infame, Trump atacou Zelenskyy como um "ditador contra as eleições" e transferiu a culpa da guerra para a Ucrânia, o país que estava a ser invadido.
A abordagem também se verificou na ONU, onde os EUA se aliaram à Rússia para se oporem a várias resoluções críticas. Uma dessas resoluções destacou a contribuição do Conselho da Europa para a criação do tribunal especial sobre o crime de agressão.
"Suspender a participação dos EUA no processo de criação do tribunal é uma das cerca de uma dúzia de concessões importantes que a nova istração dos EUA fez a Putin", disse Radosław Sikorski, ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, na véspera da viagem a Lviv.
"Não vi uma única concessão por parte de Putin e espero que o presidente Trump, sendo tão conhecido como negociador, tire a conclusão certa."
Em Bruxelas, os funcionários ainda esperam que a Casa Branca acabe por mudar de ideias e aderir à iniciativa, que permanecerá aberta a qualquer país que deseje participar. A relação de Trump com Zelenskyy parece ter melhorado desde um encontro improvisado no Vaticano, no mês ado, e a de um acordo muito aguardado sobre minerais.
"A minha expetativa é que os EUA acabem por aderir, porque têm um historial muito bom de cooperação com o Conselho da Europa", disse o funcionário da UE.
"Tenho algumas razões para acreditar que os EUA serão úteis neste processo".
A última vez que o crime de agressão foi levado a tribunal foi durante os julgamentos de Nuremberga, realizados após a Segunda Guerra Mundial, quando a acusação era conhecida como "crimes contra a paz".